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IEMANJÁ

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Iemanjá (Yemọjá na NigériaYemayá em Cuba ou ainda Dona Janaína no Brasil; ver seção Nome e Epítetos) é o orixá dos ebás, divindade da fertilidade originalmente associada aos rios e desembocaduras. Seu culto principal estabeleceu-se em Abeocutá após migrações forçadas, tomando como suporte o rio Ogum de onde manifesta-se em qualquer outro corpo de água. Também é reverenciada em partes da América do SulCaribe e Estados Unidos. Sendo identificada no merindilogum pelos Odus irossum,[2][4] Ossá[5] e Ogundá,[6] é representada materialmente pelo assentamento sagrado denominado Ibá de Iemanjá. Manifesta-se em iniciados em seus mistérios (eleguns) através de incorporação ou transe.

Celebrada em Ifé como filha de Olocum a divindade dos mares, essa simbiose lendária foi enaltecida no processo da diáspora africana resultando na assimilação de Iemanjá dos atributos da água salgada, sendo o motivo para a sua associação aos mares no Novo Mundo. Com o sincretismo de outras divindades e de influências europeias, foi imbuída de inúmeros atributos e poderes em uma grande variedade de cultos. O seu arquétipo maternal consolidou-se sobretudo como Mãe de todos os Orixás. Iemanjá nas palavras de D. M. Zenicola, “representa o poder progenitor feminino; é ela que nos faz nascer, divindade que é maternidade universal, a Mãe do Mundo“.[7]

No Brasil considerado o orixá mais popular festejado com festas públicas, desenvolveu profunda influência na cultura popular, música, literatura e na religião, adquirindo progressivamente uma identidade consolidada pelo Novo Mundo conforme pode ser observado em suas representações nos mais diversos âmbitos que em sua imagem reuniram as “três raças“. Figura na Dona Janaína uma personalidade à parte, sedutora, sereia dos mares nordestinos, com cultos populares simbólicos e acessíveis que muitas vezes não expressam necessariamente uma liturgia. Nessa visão, segundo T. Bernardo Iemanjá “(…)é mãe e esposa. Ela ama os homens do mar e os protege. Mas quando os deseja, ela os mata e torna-os seus esposos no fundo do mar”.[8]

Nome e Epítetos

Estátua de Iemanjá na Praia de Camburi, VitóriaEspírito Santo

“Iemanjá”, nome que deriva da contração da expressão em iorubá Yèyé omo ejá (“Mãe cujos filhos são peixes”) ou simplesmente Yemọjá em referência a um rio homônimo cultuado nos primórdios do culto deste orixá.[9][10][11] Na NigériaYemọjá pronuncia-se com o som de “djá” na última sílaba.[12][nb 1] A versão lusófona amplamente mais aceita no âmbito acadêmico é Iemanjá, por vezes também assume a grafia de Yemanjá onde a letra inicial alude a origem do nome. Isso também observa-se no caso de Yemayá na Santeria em Cuba. No odu Ogundá é chamada de Mojeleu (Mọjẹlẹwu), esposa de Oquerê, rei de Xaqui.[6] Também é conhecida como Aleyo na mesma região de Ebadó, Aietoró, Igã e Ocotó.[13] Em Trindade e Tobago é chamada de Emanjá (Emanjah) ou Amanjá (Amanjah), e Metre Sili ou Agué Toroió (Agué Toroyo) na República Dominicana.[14]

O seu nome na cultura popular brasileira Dona Janaína a Mãe d’água é associado por alguns autores a uma origem indígena[15][16][17] mas não evidenciam seu significado ou grupo linguístico. No guarani existe Jara, pronúncia correta de Iara, significando, segundo M. A. Sampaio, “senhor, senhora, dono, dona, proprietário, proprietária. Não quer dizer ‘senhora das águas’. Para esse termo, seria Y-jara: Y– água; jára, senhor ou senhora.[18] Tal alusão à figura mitológica brasileira de Iara justificaria dois títulos em comum, Mãe d’Água e Sereia, e sua origem explica por que é tratada por “Dona”.[nb 2] Lenz, H. Goldammer em seu dicionário de tupi e guarani identifica Janaína como corruptela de ja nã inã, que significaria “costuma ser semelhante ao solitário” ou “Rainha do Mar” em uma tradução livre do Tupi.[19] O dicionário Houaiss registra a explicação da composição do nome por Olga Cacciatore como de origem iorubáiya, “mãe” + naa, “que” + iyin, “honra”.[20] M. C. Costa, em um artigo referente, localiza sua origem no diminutivo de Jana, expressão portuguesa para Anjana, ser mitológico ligado às Xanas, uma espécie de fada ou ninfa da mitologia asturiana que vive nos rios, fontes e mananciais.[20] Já outro nome Inaê é segundo Édison Carneiro apenas aférese de Janaína com mais um “ê” eufônico.[21]

Iemanjá também assume diversos epítetos e títulos em sua grande variedade de cultos. Segue uma lista incompleta, excluindo-se também qualidades e avatares (ver seção Qualidades e Avatares): Ayaba ti gbe ibu omi, rainha que vive na profundeza das águas;[22] Ibu gba nyanri, regato que retém a areia; Oloxum (Olosun), regato vermelho; Ibu Alaro, regato negro (anil); Olimọ, dona da folha de palmeiraOnilaiye, dona do mundo;[23] Onibode Iju, guardiã da floresta; mãe de Minihun (Iya ominihun), em referência a minihun que é o nome que se dá às crianças que acredita-se concebidas graças a Iemanjá;[24] Ayaba lomi o, rainha na água;[25] Iá Ori, mãe da cabeça[26] Rainha do MarSereia.[27] Outras referências como Aiocá ou Princesa de Arocá parecem corruptelas de Abeocutá, cidade principal do culto de Iemanjá.[28][29]

Mito

Iemanjá amamentando os Ibejis, início do século XX, Museu Afro Brasil

Muitos atributos e códigos morais de Iemanjá podem ser verificados em suas cantigas e oriquis,[30] tradições orais entre os iorubás,[31] seus itãs ou mitos e demais tradições também se preservaram de mesmo modo,[nb 3] estando segundo R. Ogunleye suscetíveis às limitações da memória e à extinção de saberes com a morte dos que a preservam.[32] Com a perda de muitos de seu culto durante as guerras sofridas pelos ebás, que resultaram na sua migração para uma nova região,[13] não é espantoso que seus mitos originais só aludam ao suporte de seu culto na nova localidade, o rio Ogum e não seu predecessor como adiante verificamos.

Os primeiros registros literários de seus mitos assim, como de alguns outros orixás, foram prejudicados por diversos equívocos. A. B. Ellis a ela associa uma gênese incestuosa influenciada por P. Baudin e repetida diversas vezes por autores como R. E. Dennett, Stephen Septimus Farrow, Olumide Lucas e R. F. Burton influenciados uns pelos outros,[33] e ecoada no Brasil por Arthur Ramos e Nina Rodrigues.[34] P. Verger inicialmente influenciado por tais mitos já alertava que os mesmos não eram mais conhecidos ou possível de se verificar na costa da África[35] e posteriormente conclui tratar-se de uma série de equívocos e os rebate duramente em obras posteriores.[36] Essas influências ocidentais imprecisas refutadas por Verger aderiram na interpretação de Iemanjá em sua associação com a gênese do mundo, sendo objeto de estudo assim retomado por diversos autores que veem em Iemanjá unida a Aganju (apresentado como irmão e marido) e posteriormente violada pelo filho,[37][38][39] uma síntese da cosmogonia iorubá, passando a figurar como “mãe de todos os orixás” tal como apresentado por Poli[40] ou culminando na visão poética de Prandi com Iemanjá ajudando pessoalmente Olodumarê na construção do mundo.[41]

Para Poli, mesmo a concepção de Iemanjá que vislumbramos na obra de Verger é uma divindade já sincrética, como podemos conferir em sua associação a Ieuá e também Ieiemouô.[42][43] Tal confusão não é grave no seu culto no Brasil por exemplo, onde Iemanjá tornou-se em uma nova interpretação segunda esposa de Oxalá[44] -uma concepção dos mesmos de Obatalá-, formando o casal da criação.[45] Alguns autores, como L. Cabrera em sua memorável explanação e abordagem sobre Iemanjá e Oxum, abordaram essa visão da diáspora centrada no seu novo contexto social, cultural e histórico, como é o caso de Cuba na análise da pesquisadora, não preocupando-se em um resgate propriamente a partir da origem.[46]

No Novo Mundo, também observa-se uma moralização de sua figura em associação ao sincretismo com figuras do cristianismo,[47] segundo Sousa Junior: “O exemplo mais ilustrativo disso é a perda de características guerreiras em detrimento da exacerbação de elementos como virgindade, pureza e docilidade, ideais por excelência da figura da Virgem Maria (…)”,[45] quando não em determinados momentos assume os aspectos da sensualidade em demasia, de amante, confundida na figura de Iara mesclada com as sereias europeias.[48][49] como podemos verificar na Dona Janaína da obra de Jorge Amado ou das canções de Dorival Caymmi (ver seção Iemanjá e a Música Popular Brasileira), ou mesmo no culto de Lá Sirène ou Mami Uata no Caribe (ver seção Sincretismo).

Seus mitos permaneceram relacionados as águas, muito embora o orixá possa ter passado dos rios aos mares como observamos no Brasil e em Cuba, seja em substituição de cultos de divindades esquecidas no processo de diáspora como o de Olocum[nb 4] que foi substituído no panteão afro-brasileiro por Iemanjá,[50] ou o estreitamento demasiado dessas duas divindades de mesma família, como observamos cunhado na figura de Iemanjá Olocum (Yemayá Olokun)[51] explorada por Cabrera.[52]

Origens

Ori Olocum (Cabeça de Olocum), bronze descoberto em Ifé por Leo Frobeniu

Iemanjá, em seu culto original, é um orixá associado aos rios e desembocaduras, à fertilidade feminina, à maternidade e primordialmente ao processo de gênese do Aiê (mundo) e a continuidade da vida (emi. Também é regente da pesca, e do plantio e colheita de inhames.[53] P. Verger, em seu livro Dieux d’Afrique,[54] registra: “é o orixá das águas doces e salgadas dos ebás, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadã, onde existe ainda o rio Iemanjá. As guerras entre nações iorubás levaram os ebás a emigrar na direção oeste, para Abeocutá, no início do século XIX. (…)O rio Ogum, que atravessa a região, tornou-se, a partir de então, a nova morada de Iemanjá.[55] Após a guerra entre os ebás e os daomeanos, sobraram poucas pessoas desse culto, tendo em vista a dispersão ou mesmo prisão destes pelos inimigos.[13] Segundo R. Ogunleye, “Não está claro se o rio Ogun precede Yemoja ou se Yemoja trouxe o rio Ogun a existir para que ela pudesse criar um quartel-general como um assento de seu governo. Seja qual for o caso, o rio Ogun tem vindo a ser aceito pelos iorubás como o “quartel-general” de Yemoja. De seu trono lá, ela se manifesta em qualquer outro corpo de água“.[56] A referência da guerra e da fuga dos ebás reflete-se em sua mitologia.

Os principais relatos mitológicos de Iemanjá se desenrolam com os orixás primordiais da criação iorubá do mundo. Evidenciou-se na segunda metade do século XX um consenso entre autores de que Iemanjá é filha da divindade soberana dos mares e oceanos Olocum (esta última uma divindade feminina em Ifé e masculina no Benim), sendo esse vínculo celebrado na cidade de Ifé, considerado como berço da civilização iorubá.[57][58][59][60][61][62] R. Ogunleye alude sua origem também a partir de Olorum (Olodumarê), divindade do Orum.[63] Se constata então como filha da união mitológica conturbada de Olocum e Olorum e irmã de Agué-Xalugá.[64] Olocum pelo caráter instável e destrutivo foi atada ao fundo do oceano em seus domínios após uma tentativa de dilúvio frustrada por Olorum,[65] E. L. Nascimento menciona, ao referir-se ao temor aos aspectos antissociais ou negativos dos Orixás femininos, “Iemanjá, igualmente,[nb 5] representa em seu aspecto perigoso a ira do mar, a esterilidade e a loucura“.[66] Não obstante, é muito frequente referências a natureza benéfica de Iemanjá, L. Cabrera assim defende: “Sem deformar essa definição encantadora e irrefutável, podemos imaginar Iemanjá emanada de Olocum, com seu poder e suas riquezas, mas sem as características tremebundas que o associam mais à morte do que à vida, como sua manifestação feminina – Iemanjá é muito maternal – e benéfica“.[67][nb 6] Na cosmologia e gênese de A. B. Ellis influenciada por P. Baudin é filha da união de Obatalá com Odudua numa manifestação feminina.[68][69]

P. Verger aponta sua primeira união com Orumilá, o orixá dos segredos (essa união é amplamente celebrada no culto de ifá afro-cubano com diferentes itãs registrados por L. Cabrera, mas é negada por W. Abimbọla),[70] relação que pouco durou uma vez que Orumilá a expulsa e acusa de quebrar o euó que proíbe o acesso de mulheres aos Odus e o manuseio dos objetos sagrados de Ifá.[71][72][73] L. Cabrera registra: “Orumilá teve de assistir a uma reunião de dezesseis awós, convocada por Olofi.[nb 7] Ela ficou em casa e a todos que iam consultar seu marido, em vez de dizer-lhes que esperassem sua volta, ela fazia passar adiante e adivinhava para eles. (…)quando este voltou, todos lhe pediam quem Iemanjá olhasse para eles. Orumilá explicava que as mulheres não podem jogar Ifá. Eles iam embora… e não voltavam mais“.[72]

Elegum manifestada em Iemanjá durante um festival na Nigéria

Posteriormente, Iemanjá foi casada com o Alafim Odudua[nb 8] criador do mundo e rei de Ifé, com a qual teve dez filhos. Alguns dos nomes enigmáticos de seus filhos parecem corresponder a orixás, Verger apresenta dois exemplos: “Òsùmàrè ègò béjirìn fonná diwó” (o arco íris que se desloca com a chuva e guarda o fogo nos seus punhos), e “Arìrà gàgàgà tí í béjirìn túmò eji” (o trovão que se desloca com a chuva e revela seus segredos).[57][71] Iemanjá, cansada da vivência na cidade de Ilê Ifé governada pelo marido, decide-se fugir para o Oeste, para a “terra do entardecer“. Antes de viver no mundo, Iemanjá recebera, de Olocum, sempre precavida pois “não se sabe jamais o que pode acontecer amanhã“, uma vasilha contendo um preparado mágico com a recomendação de que, se algum caso extremo se sucedesse, Iemanjá o quebrasse no chão. Iemanjá, que já havia se instalado no entardecer da Terra, foi surpreendida pelo exército do alafim Odudua que estava a sua procura. Longe de se deixar capturar, quebrou a vasilha com o preparado conforme as indicações que recebera. O preparado mágico, ao tocar o chão, fez nascer, no mesmo lugar, um rio que levou Iemanjá novamente para okun, os oceanos de Olocum onde foi acolhida.[71]

Outro mito sugere que foi casada com Oquerê, rei de Xaqui, cidade localizada ao norte de Abeocutá.[57][74] Este mito parece complementar suas andanças após a fuga de seu casamento com Alafim Odudua. O mito se inicia com Iemanjá se instalando em Abeocutá que seria a terra do entardecer do mito anterior, e o desfecho muito se assemelha, com a presença da vasilha com o preparado mágico de Olocum. Iemanjá que “continuava muito bonita“, despertou o desejo de Oquê que lhe propôs casamento. A união se sucedeu com a condição que Oquerê em nenhuma situação expusesse o tamanho da imensidão de seus seios ao ridículo. Mas Oquerê certo dia bêbado retorna para casa e tropeça em Iemanjá que o recrimina, e este não tendo controle das faculdades ou emoções, grita ridicularizando-lhe os seios. Iemanjá foge em disparada ofendida com o feito de Oquerê, que lhe persegue. Em sua fuga, Iemanjá tropeça quebrando a vasilha que lhe foi entregue e dela nasce o rio que lhe ajudará a chegar até o mar. Oquerê não querendo permitir a fuga da mulher se transforma numa colina que lhe barra o caminho para qualquer direção. Iemanjá uma vez com sua rota até o oceano bloqueada, clama pelo mais poderoso de seus filhos, Xangô.[74][75]

Assim, Verger relata o seu desfecho: “(…)chegou Xangô com seu raio. Ouviu-se então: Cacará rá rá rá … Ele havia lançado seu raio sobre a colina Oquerê. Ela abriu-se em duas e, suichchchch … Iemanjá foi-se para o mar de sua mãe Olocum. E aí ficou e recusa-se, desde então, a voltar em Terra“.[74]

Evolução e Interpretações do Mito

Detalhe da escultura Iemanjá de Carybé, onde é possível notar orixás representados dentro do seu ventre, como Xangô com seu oxê e Ogum com sua espada.[76] Museu Afro-BrasileiroSalvadorBahia

Muito da interpretação de Iemanjá e de sua mitologia deve-se aos seus primeiros registros escritos como observa-se em P. Baudin e outros, o seu atributo de Mãe de todos os orixás é oriundo do relato de sua união com Aganju, da qual teria surgido o orixá Orungã, este último atraído pela mãe teria tentado possuí-la em um momento de ausência do pai. Da consumação do incesto ou da mera tentativa da mesma, sucedeu-se uma fuga da parte de Iemanjá, como noutros episódios, que horrorizada cai sobre a terra e de seus seios rasgados surgem dois lagos e sucede-se assim o parto coletivo de diversos orixás, juntamente do Sol e da Lua, porém este relato possui sérias inconsistências inclusive a menção a Olocum como o primeiro a nascer desse parto sendo que a sequência de nascimentos variam de um autor a outro e os desígnios dos orixás citados.[33] L. Cabrera ao relatar este mito a partir de depoimentos de alguns santeiros sobrepõe em uma mesma figura duas divindades distintas, Iemanjá e Iemu, a sua Yemayá-Yemu esposa de Olorum que depois através de um Obatalá, Achupá, deu à luz os orixás e os dois astros anteriormente citados, esta abordagem é comparada pela autora a outra versão obtida de uma informante em exílio de Iemanjá casada com Aganju, que muito se assemelha ao relato dos autores P. Baudin, A. B. Ellis, R. E. Dennett, Stephen Septimus Farrow, Olumide Lucas e R. F. Burton; Cabrera em nota lança luz quanto a este mito tratar-se de uma variação do mito de Iemu verdadeira mãe de Ogum e que o incesto teria sido praticado por este,[77] o mesmo é afirmado por Natalia Bolívar Aróstegui[78] e outros autores.[79][80]

Verger, que não observa os relatos de A. B. Ellis na costa da África, considera um visão equivocada e extravagante a de padre Baudin, e que só teria cruzado o Atlântico através de Ellis. O mesmo registra: “Durante a pesquisa que fiz a partir de 1948 nos meios não letrados destas regiões da África, nunca encontrei vestígios das lendas inventadas por Rev. Padre Baudin“. Atualmente, R. Prandi, que rejeita a visão de Verger, defende que o mesmo mito é de grande conhecimento por parte dos praticantes do culto ao orixá na Bahia, com a observação que os mesmos não conservaram o nome de Orungã.[81] A visão de Prandi ignora a influência do acesso de religiosos a autores como Arthur Ramos, fortemente influenciado por T. J. Bowen e A. B. Ellis, e demais estudiosos que tentaram atuar como bastiões de resgate do que acreditavam ser a identidade dos negros já perdida. Como destaca Roberto Motta, o papel do antropólogo “se transforma em doutor da fé, descobridor ou inventor da tradição e da memória“,[82] esse aparecimento gradativo do mito entre os devotos é reforçado com a comparação de dois relatos de períodos distintos, pelo relato de Nina Rodrigues em 1934: “É de crer que esta lenda seja relativamente recente e pouco espalhada entre os nagôs. Os nossos negros que dirigem e se ocupam do culto iorubá, mesmo dos que estiveram recentemente na África, de todo a ignoram e alguns a contestam”,[81] outra menção quanto ao desconhecimento generalizado do mito, mas o seu já aparecimento é a pesquisa do escritor Jorge Amado que se utiliza da metáfora de Iemanjá e Orungã para seu livro Mar Morto, o mesmo relata: “Não são muitos no cais que sabem da história de Iemanjá e de Orungã, seu filho.[83]

Outro atributo que lhe foi associado foi o poder sobre as cabeças e portanto sobre o destino. Na crença iorubá, os aspectos que os seres humanos vivenciam em suas vidas são oriundos da escolha do ori (cabeça) que aplica o destino. Nessa tradição crê-se que após Obatalá modelar os seres, Ajàlá fornece a cabeça.[84] Nas palavras de Abimbọla, “Ajàlá (outra existência sobrenatural que não é reconhecida como divindade) fornece o ori (cabeça) de sua loja de cabeças…[85] S. Poli evidencia que Ajàlá “É esquecido e descuidado e devido a isto nem sempre as cabeças saem boas. Como resultado disso a maioria das pessoas escolhem por si mesmas as cabeças sem recorrerem a Ajàlá e acabam assim por escolher cabeças ruins e imprestáveis”, sendo devido a isso o motivo de serem necessários rituais como o bori para estabelecer o equilíbrio que o ori necessita.[84] No Brasil a Iemanjá foi atribuída a tarefa da manutenção das cabeças, em especial no procedimento do bori tornando-se a Iá Ori (“Mãe das Cabeças”), a cerca disso R. Prandi nos explica: “Ajàlá está esquecido no Brasil, tendo sido substituído por Iemanjá, a dona das cabeças, a quem se canta, no xirê, quando os iniciados tocam a cabeça com as mãos para lembrar esse domínio, e na cerimônia de sacrifício à cabeça (bori), rito que precede a iniciação daquela pessoa“.[86]

Ilê Ori (casa de Ori), que contém o Ibo Ori, assentamento da cabeça, representação dentro do culto tradicional em Nigéria. No Brasil, um recipiente de louça que se usa como fundamento para fazer bori é chamado de Ibá de Ori de Ori
Ritual para Ori ao lado de uma estátua de Iemanjá no candombléIlê Axé Ijino Ilu OróssiBahiaBrasil

S. Epega defende o culto de Iemanjá como Iá Ori justificando o porquê dessa atribuição, ela relata:”Quando Iemanjá veio do Orum [mundo ancestral] para o Aiê [planeta Terra], ao chegar descobriu que cada orixá já tinha seu domínio na terra dos homens, e nada havia sobrado para ela. Queixou-se a Olodumarê [deus criador], que disse a ela ser seu dever cuidar da casa de seu marido Obatalá [rei das roupas brancas], de sua comida, de sua roupa, de seus filhos. Iemanjá se revoltou. Ela não tinha vindo do Orum para o Aiê para ser dona de casa e doméstica. E tanto falou, tanto reclamou, que Obatalá foi ficando perturbado, até que finalmente enlouqueceu. Ao ver seu marido[nb 9] nesse estado, Iemanjá pensou na atitude que Olodumarê iria ter com ela quando chegasse do Orum. E procurou os melhores frutos, o óleo mais claro e encorpado, o peixe mais fresco, o Inhame mais bem pilado, um arroz bem branco, os maiores pombos brancos, o obi mais novo, o melhor atareekuru acabado de cozinhar, ori muito bom, os ibim mais claros, orobô macio, água muito fria, e com isso tratou a cabeça de Obatalá. Ele foi melhorando com os ebós, e um dia ficou completamente curado. Olodumarê chegou do Orum para visitar Obatalá. Falou a Iemanjá que havia visto tudo o que acontecera, e deu-lhe os parabéns por ter curado tão bem a cabeça de seu marido. Dali para frente, Iemanjá iria ajudar os homens que fizessem más escolhas de ori [destino, força vital], a melhorar suas cabeças, com uma oferenda determinada pelo oráculo de Ifá, através de Orumilá [deus do destino dos homens].[87]

Curiosamente em Cuba onde não há referência a posse desse atributo por Iemanjá, L. Cabrera consegue resgatar o seguinte mito:”No começo do mundo, os Orixás e homens confabularam contra Iemanjá, que entrava na terra, a varria continuamente com suas ondas e a todos impunha respeito. Olorum disse a Obatalá: ‘Vá ver de que acusam Iemanjá.’ Eleguá, que ouviu a ordem recebida por Obatalá, disse a Iemanjá: ‘Consulte-se com Ifá para que você confunda todos os seus inimigos.’ Iemanjá seguiu o conselho de Eleguá, consultou Ifá e este indicou que ela fizesse um ebó (sacrifício) de carneiro. Obatalá chegou a Ilê-Ifé, a aldeia dos orixás e dos homens e, enquanto todos falavam, Iemanjá saiu do mar e avançou até o grande Orixá, mostrando-lhe a cabeça do carneiro. Obatalá pensou: ‘É a única que tem cabeça!’,e confirmou seu poder e grandeza.[72]

Noutra versão, Iemanjá se encontra com Olorum na reunião por ele imposta aos Orixás e lhe presenteia com a cabeça de um carneiro e este ao perceber que ela era a única dos presentes a homenageá-lo diz: “Awoyó Orí dorí e”. “Cabeça você traz, cabeça você será”. A justificativa do mito seria que Iemanjá é “cabeça que pensa por si mesmo” e a autora não apresenta maiores justificativas para entendermos a simbologia nele expressa, no entanto R. Prandi e A. Vallado justificam esse relato como referência da tutela dos oris por parte de Iemanjá.[86][88] L. Cabrera ao escrever sobre um mito que menciona Iemanjá novamente casada com Aganju evidencia Obatalá como dono das cabeças, atributo que Aganju sem sucesso teria tentado tomar para si.[72]

Olukunmi Omikemi Egbalade, sumo-sacerdote do culto a Iemanjá em Ibadã, em entrevista, afirma não só a função do orixá em formar as cabeças juntamente a Obatalá, como seu papel de levar água para cuidar dos recém-nascidos modelados pelo último.[89] A. Apter ao explorar o aspecto político de seu culto em Aiedê, em especial quanto a descrição do ritual da cabaça realizado pela sua alta sacerdotisa, escreve: “Yemoja frutificando a cabaça representa o útero da maternidade, a cabeça do bom destino, a coroa do rei, a integridade da cidade, mesmo o encerramento cosmológico do céu e da terra“,[90] o que não é discrepante com a afirmativa de S. Epega, “(…)no ritual de bori [bo ori – louvar a cabeça], Yemoja sempre é saudada com a cantiga; ‘Ori ori ire, Yemoja ori orire, Yemoja’ (Cabeça cabeça boa, Yemoja coloca boa sorte na cabeça, Yemoja)“, ficando evidente algum aspecto do orixá quanto a cabeça.[87]

Altar de Iemanjá em templo em Trinidad (Cuba), com insígnias do sol e da lua

Outro atributo ou símbolo muito utilizado e presente na interpretação de Iemanjá é a luaR. Prandi relata que Iemanjá teria criado a lua para salvar o sol de extinguir-se, ele registra:”Orum, o Sol andava exausto. Desde a criação do mundo ele não tinha dormido nunca. Brilhava sobre a Terra dia e noite. Orum já estava a ponto de exaurir-se, de apagar-se. Com seu brilho eterno, Orum [nb 10] maltratava a Terra. Ele queimava dia após dia. Já quase tudo estava calcinado e os humanos já morriam todos. Os Orixás estavam preocupados e reuniram-se para encontrar uma saída. Foi Iemanjá quem trouxe a solução. Ela guardara sob a saia alguns raios de Sol. Ela projetou sobre a Terra os raios que guardara e mandou que o Sol fosse descansar, para depois brilhar de novo. Os fracos raios de luz formaram um outro astro. O Sol descansaria para recuperar suas forças e enquanto isso reinaria Oxu, a Lua. Sua lua fria refrescaria a Terra e os seres humanos não pereceriam no calor. Assim, graças a Iemanjá, o Sol pode dormir. À noite, as estrelas velam por seu sono, até que a madrugada traga outro dia.[86]

Em sua associação aos mares, Iemanjá através da lua e suas fases juntamente com a força do vento, que agita as águas, controlaria as marés.[91] P. Iwashita ao discutir o arquétipo da maternidade e feminino afirma que “Por sua vez o mais importante símbolo para a Anima é a lua, por causa da relação entre as suas diferentes fases e o ciclo menstrual na mulher.[92] Azevedo Filho em uma análise, justifica que pelas suas “diversas fases, que descrevem o ciclo contínuo de aniquilamento/regeneração, a lua se tornou, sem dúvida, o símbolo maior das variações no (do) tempo(…) Correlacionada portanto com Iemanjá, a lua representa ainda a zona noturna, inconsciente, obscura da psique humana, pulsões adormecidas, mas que revivem nos sonhos, nas fantasias e no desejo impossível, ao contrário do sol(…).[93]

Essa analogia entre a lua e os ciclos com aniquilamento/regeneração, é notável no mito registrado por L. Cabrera que relata a vingança de Iemanjá contra a humanidade que teria conspirado contra o seu primogênito, que foi sentenciado a morte e executado. Iemanjá tomada de ira (aqui consegue absorver as características e o objetivo de Olocum, mas com grande êxito), teria destruído a primeira humanidade, habitando nesse mito o contraste entre origem e destruição.[72][86]

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PAI ANTÔNIO – O PRIMEIRO

PAI ANTÔNIO – O PRIMEIRO

Ainda nos primórdios da Umbanda, a "Cabana de Pai Antônio" foi estabelecida em Cachoeiras de Macacu, no estado do Rio de Janeiro. De acordo com a crença umbandista, a fundação do terreiro se deu por

ORIXÁS NA UMBANDA

ORIXÁS NA UMBANDA

Orixás são divindades da religião iorubá representados pela natureza. Dividem-se em dois grupos, os aborós (em iorubá: aborò) ou orixás masculinos, e as aiabás ou orixás femininas.[1] Foram enviados por Olodumarê para a criação do mundo e após

PRETOS VELHOS

PRETOS VELHOS

Preto velho ou Pretos-velhos são uma linha de trabalho de entidades de umbanda. São espíritos que se apresentam sob o arquétipo de idosos africanos[1] que viveram nas senzalas, majoritariamente como escravos que morreram no tronco ou de velhice, e que adoram contar as histórias do

CABOCLOS

CABOCLOS

Caboclos são uma linha de trabalho de entidades de Umbanda, que se apresentam como indígenas. Incorporam também no candomblé de caboclo, de onde possivelmente são originários.[1][2] Caboclo Pena-Marrom História Os caboclos estão presentes na Umbanda desde a sua

ERÊS

ERÊS

Erês são uma linha de trabalho de entidades de Umbanda, que se apresentam como crianças . Incorporam também no candomblé e umbanda, de onde possivelmente são originários. Especialistas afirmam, que, em geral, o erê conhece todas as demandas

MARINHEIROS

MARINHEIROS

Marinheiro na Umbanda são uma linha de trabalho da Umbanda, formada por entidades geralmente associadas aos marujos, que em vida empreendiam viagens pelos mares, enfrentando toda sorte de infortúnios.[1] Trabalham na linha das águas, de Iemanjá, orixá que

ERVAS NA UMBANDA

ERVAS NA UMBANDA

As ervas nos rituais de Umbanda têm a função mágico litúrgico de descarregar, purificar,equilibrar, fortalecer pessoas e ambientes. A energia vital dos vegetais tem o poder de atuarna aura humana

ERVAS FRIAS

ERVAS FRIAS

Tapete de Oxalá – Boldo BOLDO SETE-DORESTambém conhecido como tapete de Oxalá, suas características principais são a folha aveludadae o odor bem acentuado.Nome Científico: Plectranthus barbatus AndrewsFamília botânica: Lamiaceae (Labiatae)Sinonímias: